terça-feira, 27 de julho de 2010
Palavras de Somerset Maugham à guisa de prefácio
Chamaram-me cínico. Acusaram-me de fazer os homens piores do que o que eles são. Não creio que o tenha feito. A única coisa que fiz foi trazer à luz certos traços a que muitos escritores fecham os olhos. Creio que o que me tem impressionado principalmente nas criaturas humanas é a sua falta de consistência. Tem-me assombrado como os traços mais incompatíveis podem existir na mesma pessoa; e, apesar de tudo, produzir uma harmonia plausível. Muitas vezes, perguntei a mim próprio como é possível que características aparentemente irreconciliáveis coabitem na mesma pessoa. Conheci escroques capazes de sacrifício, ladrões bondosos por natureza, e prostitutas para quem era um ponto de honra retribuir com o devido valor o dinheiro recebido. A única explicação que posso oferecer é que é tão instintiva em cada pessoa a convicção de que é única no mundo, e privilegiada, que sente que tudo quanto faz - por muito prejudicial que possa ser aos outros - é, se não natural e justo, pelo menos venial. O contraste que descobri nas pessoas interessou-me, mas não creio que o tenha sublinhado excessivamente. A censura que de vez em quando me têm feito é talvez devida ao facto de eu não ter expressamente condenado a parte má das personagens da minha invenção, nem louvado a boa. Deve ser um defeito meu o não me desgostar gravemente com os pecados dos outros, senão quando eles me afectam pessoalmente; e, mesmo nesse caso, aprendi, pelo menos de uma maneira geral, a desculpá-los. É conveniente não esperar muito das outras pessoas. Devemos ficar gratos se nos tratam bem, mas imperturbáveis se nos tratarem mal. "Porque cada um de nós", como disse o Estrangeiro Ateniense, " deve grande parte do que é às inclinações dos seus desejos e à natureza de sua alma". É a falta de imaginação que impede as pessoas de ver as coisas de um ponto de vista que não o seu, e não é razoável zangarmo-nos com elas por lhes faltar esta faculdade.
Julgo que podia ser justamente censurado se só visse os defeitos das pessoas, e fosse cego às suas virtudes. Não estou convencido que seja esse o caso. Não há nada mais belo do que a bondade, e sempre me agradou muito mostrar que ela existe em pessoas que, pelas normas vulgares, seriam inexoravelmente condenadas. Mostrei-a onde vi. Pareceu-me por vezes, é certo, que ela brilhava mais fortemente nessas pessoas por estar rodeada pela escuridão e pelo pecado. Admito a bondade dos bons como natural e divirto-me quando lhes descubro os defeitos ou os vícios; comovo-me quando vejo a bondade dos maus e estou pronto a encolher tolerantemente os ombros à sua maldade. Não sou o guarda do meu irmão. Não consigo forçar-me a julgar os meus semelhantes; contento-me com observá-los. A observação levou-me a acreditar que, no fim de contas, não há diferença entre os bons e os maus como os moralistas no querem fazer crer.
O que marca o valor da cultura é o seu efeito sobre o carácter. De nada vale, se lhe não dá nobreza e força. Deve servir para a vida. O seu objectivo não é a beleza, mas o bem. Demasiadas vezes, como sabemos, a cultura dá origem à arrogância. Quem nunca viu o sorriso irônico do letrado ao corrigir uma citação errada, ou o aspecto magoado do conhecedor quando alguém elogia uma pintura que ele não aprova? Não há melhor mérito em ter lido um milhar de livros do que em ter lavrado um milhar de campos. Não é maior o mérito o ser capaz de chapar num quadro uma descrição correcta do que o ser capaz de descobrir o defeito dum automóvel avariado. Em cada um dos casos, trata-se de conhecimentos especializados. O banqueiro tem os seus conhecimentos, também; e como ele o artífice. É um preconceito tolo dos intelectuais o de que só os seus conhecimentos contam. A Verdade, o Bem e o Belo não são a recompensa dos que requentaram escolas caras, roeram bibliotecas, requentaram museus. O artista não tem desculpa quando se serve dos outros com condescendência. É louco, se pensa que os seus conhecimentos são mais importantes do que os dos outros; imbecil, se não pode encontrar-se com eles como de igual para igual. Matthew Arnold prestou um péssimo serviço à cultura ao insistir na oposição dela ao filistinismo.
Tenho tido amizade, amizade profunda, a algumas pessoas; mas nunca me interessei pelos homens em geral por causa deles próprios, mas sempre por causa do meu trabalho. Não encarei, como Kant gostava de fazer, cada homem como um fim em si, mas como material que me poderia ser útil como escritor. Tenho-me preocupado mais com as pessoas obscuras do que com as célebres. São mais frequentemente elas próprias. Não tiveram necessidade de inventar uma figura que as protegesse do mundo ou o impressionasse. As suas idiossincrasias tiveram mais facilidade em desenvolver-se no círculo limitado de sua atividade, e visto nunca terem estado expostas ao público, nunca lhes ocorreu que tivessem alguma coisa a esconder. Exibem as excentricidades por nunca se terem lembrado que são excêntricas. E, no fim de contas, é com a massa comum dos homens que nós, escritores, temos de trabalhar; os reis, os ditadores, os magnatas do comércio são, sob o nosso ponto de vista muito poucos satisfatórios. Escrever a respeito deles é uma aventura que muitas vezes tem tentado escritores; mas o fracasso que lhes recompensou os esforços mostra que tais criaturas são demasiadamente excepcionais para poderem servir de fundação legítima a uma obra da arte. É impossível fazê-las reais. O vulgar é o campo mais rico para o escritor. O seu inesperado, a sua singularidade, a sua variedade fornecem-nos material infinito. O homem célebre é muitas vezes de uma só peça; o homem pequeno, esse, é um monte de elementos contraditórios. É inesgotável. Nunca se acaba, as surpresas que ele nos reserva. Pela minha parte, preferia mil vezes ficar um mês numa ilha deserta com um veterinário do que com um primeiro-ministro.
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É interessante o que aconteceu por estes dias. Eu sempre tive muito interesse pela literatura inglesa, e nomes como Yeats e Maugham, entre outros, sempre fizeram parte de uma nuvem de nomes que eu deveria conhecer e ler.
Recentemente assisti ao Se7en, e vi que o personagem do Morgan Freeman se chamava William Somerset, s dois primeiros nomes de William SOmerset Maugham e durante o filme, Somerset e David Mills discutem justamente um livro do autor, A Servidão Humana. Fiquei muito instigado a procurar o Maugham para ler.
Noutro dia, ao sair de casa, vi alguns livros jogados aos pés de um cesto de lixo, identifiquei um pela capa escura e bem envelhecida, mas não me dispus a olhar que livro era. Quando voltei, o porteiro do prédio onde moro estava com o livro que eu tinha visto nas mãos. Perguntei a ele do que se tratava e ele disse que eram uns livros que estavam no lixo. Vi do que se tratava, Uma Antologia de Contos de Somerset Maugham. Ele perguntou se eu queria eu é claro que eu aceitei. O prefácio aqui apresentado é o prefácio deste mesmo livro. Um versão portuguesa de 1957.
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