Decididamente uma obra prima.
Num primeiro momento podemos entender a série como uma
patriotada norte-americana ou um “drama pequeno burguês”, mas se abrirmos mão da
preguiça e nos munirmos de um mínimo de boa vontade intelectual podemos ver que
não se trata disso.
Dois espiões russos, um rapaz e uma jovem são enviados para trabalharem
disfarçados nos EUA, eles devem viver como americanos, devem ter filhos. Construindo
personagens dentro de personagens eles se dissolvem em inúmeras personalidades,
quem de fato são? Como conseguirão sair desse labirinto? Sabotagem por
sabotagem, roubo por roubo, mentira por mentira, assassinato por assassinato
covardes e os dois vão se perdendo.
Quantas atrocidades são necessárias para construir um mundo
melhor e mais justo? É necessário muito autoconhecimento aqui para não se agir
de má fé. Afinal, assassinar uma idosa aposentada e trabalhadora para o
benefício da revolução do proletariado é um paradoxo impossível de ser
conciliado por uma pessoa efetivamente disposta a “fazer o bem”. Tentando ir mais a fundo, The Americans fala sobre
pessoas engajadas em destruir um mundo que elas julgam ser mal, mas que
inconscientemente preferem em detrimento daquilo que elas supostamente foram
treinadas e doutrinadas a acreditarem conscientemente.
Mas é aqui que entramos em algo que me chama muito a
atenção: a relação entre indivíduos e sociedade, ou ainda, indivíduo e estado.
Assistir a essa série coincidiu com eu estar fazendo uma
releitura do Raízes do Brasil, clássico da historiografia brasileira escrito
por Sérgio Buarque de Holanda. Fazendo um paralelo entre The Americans e Raízes
do Brasil percebi uma grande possibilidade de fazer um paralelo entre uma questão
central no livro e um aspecto importante da série.
Abaixo transcrevo início do capítulo clássico do livro, O
Homem Cordial. Lembro que Sérgio Buarque de Holanda parte da oposição entre estado
e família para desenvolver o conceito do homem cordial. Não quero fazer
paralelo entre o conceito de homem cordial com The Americans, mas sim do ponto
de partida de Sérgio Buarque.
“O estado não é uma ampliação do circulo familiar, e ainda
menos, uma integração de certos agrupamentos, de certas vontades
particularistas, de que a família é o melhor exemplo. Não existe, entre o
circulo familiar e o Estado, uma gradação, mas antes uma descontinuidade e ate
uma oposição. A indistinção fundamental entre as duas formas é prejuízo romântico
que teve os seus adeptos mais entusiastas durante o século XIX. De acordo com
esses doutrinadores, o Estado e as suas instituições descenderiam em linha
reta, e por simples evolução, da família. A verdade, bem outra, é que pertencem
a ordens diferentes em essência. Só pela transgressão da ordem doméstica e
familiar é que nasce o Estado e que o simples individuo se faz cidadão,
contribuinte, eleitor, elegível, recrutável e responsável antes as leis da
cidade. Há nesse fato um triunfo do geral sobre o particular, do intelectual
sobre o material, do abstrato sobre o corpóreo e não uma depuração sucessiva,
uma espiritualização de formais mais naturais e rudimentares, uma procissão das
hipóteses, para falar como na filosofia alexandrina. A ordem familiar, em sua
forma pura, é abolida por uma transcendência.”
“ninguém exprimiu com mais intensidade a oposição e mesmo a
incompatibilidade fundamental entre os dois princípios do que Sófocles. Creonte
encarna a noção abstrata, impessoal da Cidade em luta contra essa realidade
concreta e tangível que é a família. Antígona, sepultando Polinice contra as
ordenações do Estado, atrai sobre si a cólera do irmão, que não age em nome de
sua vontade pessoal, mas da suposta vontade geral dos cidadãos, da pátria.
“E todo aquele que acima da Pátria
Coloca seu amigo, eu o terei por nulo.”
O Conflito ente Antígona e Creonte é de todas as épocas e
preserva-se sua veemeência ainda em nossos dias”.
Talvez fique um pouco obscuro meus comentários, mas se fosse
desdobrar de fato a relação disso em The Americans eu daria um grande spoiler. Mas
para não ficar muito obscuro, tentarei aqui desdobrar onde esse ponto é central
em The Americans. Misha e Nadezhda são espiões soviéticos obrigados a constituírem
família nos EUA. Tornam-se assim Philip e Elizabeth Jennings. Eles assumem suas
vidas falsas, as quais vivenciam mais tempo do que suas vidas verdadeiras. Estão
na casa dos 40, enquanto foram para os EUA com menos de 20. Eles têm dois
filhos, Paige e Henry.
Mas a família dos Jennings é uma criação forçada pela KGB, pelo
estado soviético. É uma farsa. Mas e Paige? E Henry? São uma família ou não são?
O conflito entre estado e família é inevitável e inconciliável. Quando o estado
soviético intervém na educação dos filhos dos Jennings e na vocação
profissional dos mesmos Philip e Elizabeth percebem que de fato, sua família é
uma mentira e o próprio conceito de família é uma antinomia dentro do estado
soviético. Uma impossibilidade, uma vez que todos estão a serviço de um bem
maior que e definido por uma entidade abstrata para além de qualquer
individualidade. E essa tomada de consciência é central para os dois de fato
entenderem quem são. Obviamente essa leitura não se aplica apenas ao estado
soviético, no entanto talvez ganhe potência pelo fato do estado soviético ter
sido uma maximização da ideia de estado totalitário com controle máximo sobre
corpos, corações e mentes, e talvez essa sua maior brutalidade. Ao Jennings, ou
Nadezhna e Misha, só lhes restam fragmentos de personalidades, disfarces dentro
de disfarces. Que talvez, com a dissolução do regime socialista soviético,
possam ser enfim construídas depois de tantas perdas.
Só para encerrar, Holly Taylor tem tudo para ser uma das maiores estrelas da sua geração.